Este artigo, de Carlos P. Reyna, é o resultado de um estudo etnocinematográfico no qual foi reinterpretado, com e no filme, o rito andino de marcação do gado denominado Santiago, que a comunidade camponesa de Auray (Andes Centrais do Peru) celebra todo dia 25 de julho de cada ano.
Segundo os estudiosos da religião andina, após a chegada dos espanhóis no século XVI, é provável que no Peru tenha se produzido uma espécie de fusão entre os sistemas de crenças e práticas religiosas existentes e a católica trazida pelos espanhóis. Essa situação persiste hoje, se bem que transformada pela ação dos acontecimentos.
De acordo com o autor, o ritual andino Santiago coloca-nos um problema de relações de correspondência entre a representação (imagens, signos e símbolos) do tempo e do espaço, dos gestos e das palavras, dos mitos e dos ritos que a festa Santiago traduz toda vez que se realiza. Seu caráter dramático é uma maneira de sublinhar profundamente que o gesto ritual deseja alcançar o evento ou ato como totalidade, embora irremediavelmente perdido. Daí a necessidade de se estudar o mundo cultural dos Andes Centrais do Peru tomando como ponto de partida a representação do tempo e do espaço e suas relações com gestos, palavras, mitos e ritos.
Existe um claro grau de diferenciação entre aquilo que se vê, percebe e significa para o informante (objeto da pesquisa) e aquilo que se vê, percebe e significa para o pesquisador (sujeito da pesquisa). No entanto, como essa diferença não é normativa, um dos conceitos não é necessariamente melhor que o outro, menos ainda é correto preferir um ao outro. A verdadeira questão, no caso dos ‘nativos’, é que não é necessário ser um deles para conhecê-los. Para saber como as pessoas se representam para si mesmas e para os outros é necessário adotar uma abordagem metodológica que evolua por meio do diálogo entre intérprete (pesquisador) e o Outro (informante).
Na antropologia os métodos utilizados para obter dados, ainda que se constituam por assim dizer de dados primários, sempre devem ser analiticamente reconstituídos. É muito natural que o trabalho de campo na produção social de conhecimento demande e exija um reexame da constituição das informações obtidas. É neste estágio do processo de observação que nos detemos sobre as seguintes questões: Será que antes de elaborar e descrever os primeiros resultados da observação sensorial não deveríamos verificar se essa observação foi minuciosamente realizada? Que condição instrumental ou técnica nos permite a possibilidade de repetir, restituir e, portanto, verificar o processo de ritual observado?
As circunstâncias ritualísticas levavam à escolha de um equipamento videográfico ligeiro como instrumento de pesquisa. Os movimentos e a disposição dos participantes em diferentes espaços ritualísticos justificam-no. Vejamos: o espaço fílmico diz respeito ao espaço material, à superfície da área onde se deslocam e desdobram os comportamentos e dispositivos do ritual. É importante lembrar que os registros do ritual exigiram procedimentos metodológicos e práxis particulares que permitiram tanto o cineasta como o antropólogo de resumir-se a uma só pessoa: o próprio autor.
É preciso mencionar que das três fases sucessivas diretamente necessárias ao entendimento do ritual Santiago: os preparativos, a véspera e o dia central, duas mereceram nossa observação fílmica, a véspera e o dia central. Os preparativos, constituídos por atos que compõem a fase preliminar do processo, não participam do caráter cerimonial do Santiago, não só por tratar-se de atividades destinadas à aquisição ou preparação dos ‘ingredientes’ da festa, mas também porque sua continuidade cultural está diluída no sistema industrial. Perante essa constatação, percebemos que a cadeia temporal da relação de consecução entre a fase preliminar (os preparativos) e a fase liminar (a véspera e o dia central) não é necessária para o entendimento do processo.
Como diria Geertz (1989): ‘As sociedades contêm suas próprias interpretações. É preciso apenas descobrir o acesso a elas’. Ora pois, se a antropologia nos tem ensinado alguma coisa, é a complexidade desse acesso. Como se acede? Podemos preliminarmente dizer que, para poder dar substantivamente conta dessas interpretações êmicas, tentamos situar-nos ‘do ponto de vista do nativo’ (GEERTZ, 1997:89-107). Em tal sentido, o diálogo com o filme tem seu alcance metodológico, posto que ele nos permite o conhecimento dos comportamentos do homem por intermédio de sua interpretação com base nas imagens.
Apoiadas na restituição do rastro fluente e persistente do ritual observado, as pessoas filmadas tornaram-se elas mesmas seus próprios observadores, seus próprios críticos e, fundamentalmente, intérpretes de seus próprios comportamentos simbólicos. É esse o liame epistemológico entre o cinema e a antropologia: na restituição imagética, o ponto de vista do informante permite as interpretações do ritual, que por princípio nos são alheias.
Grosso modo, a observação direta, calcada na linguagem verbal e na memória, tem competência para apreender algumas manifestações ritualísticas presentes no ritual Santiago. No entanto, ela tende a reter somente os fatos mais relevantes, facilmente fixados pela escrita. Logo, a descrição desses fatos se verá reduzida a fragmentos de um quadro referencial maior. Em compensação, o continuum fílmico do ritual, complementado por inúmeros exames do filme, permitiu restituir toda a densidade real dos comportamentos indiscretos e sutis.
A observação fílmica possui a vantagem, com relação à observação direta, de conferir ao seu resultado, o observado filmado, um status de referência epistemológica mais legítimo que aquele conferido à observação direta. Referimo-nos à observação diferida proposta por Claudine de France. Essa capacidade de analisar em diferido como as pessoas se representam para si mesmas e para os outros nos deixou a possibilidade de inquirir e estudar com elas próprias, e a partir do observado filmado, os significados de seus comportamentos, de seus símbolos.
Na condição de antropólogo-cineasta, sabemos, pelo menos do nosso ponto de vista, que a imagem jamais poderá substituir completamente a linguagem escrita na antropologia, mas sabemos também que a palavra impõe à disciplina certos limites que o cinema está em condições de romper e transpor. Sabemos, ainda, que, se o cinema quer fornecer uma contribuição importante e indiscutível à antropologia, será necessário descobrir-lhe a linguagem adequada aos elementos que manipula, num contexto que não é o da palavra falada ou escrita.
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