Hakim Bey (Peter Lamborn Wilson) é praticamente ignorado em nosso meio acadêmico.Talvez seja conseqüência de uma separação entre os circuitos de produção conceitual da cultura culta ou domesticada e da cultura pop selvagem. Autores radicais que o próprio Hakim Bey utiliza, como Foucault, Deleuze ou Derrida, todo mundo conhece, ao menos de nome, porque são autores highbrow. Os livros que escreveram são obras complexas, de leitura difícil, que requerem um preparo filosófico considerável. Hakim Bey, que utiliza esses autores em sua obra, faz isso de uma maneira arrevesada, inserindo-os em uma interlocução pop, articulando suas idéias com processos e eventos radicalmente extra-acadêmicos, com o que está se passando de fato no presente imediato.
A história político-cultural brasileira é complexa. Suely Rolnik lembrava outro dia a cisão fundamental na esquerda brasileira, na virada dos 1960-70, entre o pessoal da contracultura e o pessoal da guerrilha, ou mais geralmente da militância política. Essa diferença foi vivida dramaticamente (mas também alegremente). Havia um conflito entre o pessoal do chamado nacional-popular, do CPC, que possuía um projeto de revolução ligado a uma idéia de cultura autenticamente nacional, e os tropicalistas, que eram internacionalistas e saíam por cima (ou por fora) e por baixo (ou por dentro) da mediocridade visada pelo projeto nacional-popular. Esse debate reencenava a grande discussão anterior e penetrava completamente na academia, que estava organicamente ligada ao assunto, até porque vários teóricos faziam parte dela, sobretudo no lado do nacional-popular.
Depois do tropicalismo, que foi de fato um movimento cultural de alcance nacional, de repercussão vertical, que ia da academia até a juventude, que era teorizado pelos críticos literários ao mesmo tempo em que seus discos eram comprados pela garotada que tomava ácido no píer de Ipanema, não houve nada na mesma escala. Houve movimentos locais, mas com menor fôlego e repercussão. Havia uma vitalidade nestes movimentos posteriores, mas não havia a radicalidade original do tropicalismo. O tropicalismo unia finalmente Vicente Celestino e John Cage, a cultura popular e a cultura erudita, passando estrategicamente pela culturapop, que foi a grande bandeira deles.
O governo atual está dividido ao meio, porque há dois projetos chamados de “nacionais”. Um é o projeto nacional clássico, no mau sentido da palavra, que é o de inventar (ou descobrir) essa coisa chamada de “identidade nacional”. O outro projeto é o de “nós temos que desinventar o Brasil”. É um projeto mais internacional, que troca o “só nós, viva o Brasil”, pelo “tudo é Brasil”. Porque o mundo já é o Brasil, e esta questão já acabou... Uma frase repetida é que o Brasil é grande, mas o mundo é pequeno; então não adianta ficar pensando só no Brasil. Essa frase tem a ver com um projeto hegemônico dentro do governo, baseado na soja, na agropecuária predatória, na industrialização, em um projeto que quer transformar o Brasil nos EUA do século XXI.
E do outro lado você tem o pessoal que está interessado em pensar o mundo, não em pensar “o Brasil”. Você pensa no Brasil, você está aqui, não tem como não pensar no Brasil, mas você não precisa pensar o Brasil, pensar no Brasil já basta, está ótimo. Há duas maneiras de conceber a questão da “brasilidade”: ou você acha que ela é causa do que você faz (e de causa se chega rápido a desculpa, a princípio sagrado, sabe-se mais a quê); ou então você percebe que ela é apenas uma conseqüência, você não pode não ser brasileiro, não tem como não ser. Não tem jeito; a não ser que você se exile ou troque de língua, mas enquanto isso tudo o que você fizer é brasileiro. Relaxe e goze.
Há uma situação muito confortável da elite brasileira que é poder brincar de dominado quando olha para fora, dizendo “vejam só como eles mandam na gente, nós somos uns pobres coitados, estamos aqui dominados, explorados cultural e economicamente”, e brincar de dominantes quando olhamos para dentro e mandamos a cozinheira fazer nossa comida. Você é um explorado pela cultura francesa e pode dar um grito de guerra contra a alienação cultural; mas é sempre um patrão que reclama da alienação cultural.
Qual é o modelo típico, a trajetória típica do intelectual brasileiro (ou, aliás, norte-americano também)? É o menino de província, nascido na cidade pequena, e que está o tempo todo sonhando com o Rio de Janeiro ou São Paulo. Esse modelo do sujeito que espera o suplemento dominical do jornal como se fosse a Bíblia, a hóstia, que encomenda livros da capital, meses a fio à espera das notícias culturais da metrópole. Éramos todos meninos do interior; inclusive os cariocas e paulistas – nossa metrópole era estrangeira, apenas. Isso acabou. Hoje tudo está dado. Você descarrega livro, pega tudo. Há uma democratização gigantesca, desde que você tenha um computador de banda larga, que no Brasil talvez se expanda comesse projeto do governo de pontos de inclusão digital.
Os índios pedem o tempo todo. Sim, pedem. E reclamamos que o que eles obtêm é jogado fora de repente: as aldeias ficam cheias de objetos descartados que os índios pediram para nós, insistiram até conseguir, e quando conseguiram não cuidam, jogam fora, deixam apodrecer, enferrujar. E os brancos ficam com aquela idéia de que esses índios são uns selvagens mesmo, não sabem cuidar das coisas. Mas é claro, o problema deles não é o objeto, o que eles querem é a relação. Uma vez a relação se mantendo, o objeto cumpriu sua função. Essa é a idéia da relação como algo interminável: a dádiva. Toda dádiva é interminável, é uma relação interminável.
Esse dom gratuito de uma dávida, unilateral e total, não existe entre os índios de forma alguma. Esse é um exercício de poder horroroso, o dom gratuito. É o dom que não pode existir, porque se há uma sociedade contra o Estado, para usar a linguagem clastreana, ela não pode aceitar jamais a idéia e um dom gratuito. Dom gratuito é só outro nome do poder absoluto, quem dá de graça é o poder absoluto, porque ele pede tudo em troca, o dom gratuito é aquele cujo pagamento é infinito, porque não tem pagamento, o dom gratuito é aquele que eu não posso pagar, o dom divino.
Os índios ficam escandalizados com a falta de senso social, falta de inteligência, na verdade, dos brancos. Porque os brancos não entendem. Acho que essa é a sensação profunda que os índios têm diante da nossa sociedade, os brancos não entendem nada do que é uma sociedade. E é verdade, eles entendem muito sobre como fazer objetos, fazem coisas maravilhosas, objetos espetaculares, são grandes tecnólogos, fazem milagres, objetos que a gente não entende como funcionam, são verdadeiros demiurgos tecnológicos; mas no que diz respeito à vida social, são de uma ignorância insondável.
A citação, que é o dispositivo modernista por excelência da criação, é na verdade o reconhecimento de que não há criação absoluta, a criação não é teológica, você sempre cria a partir de algo que já existe. Como a famosa frase do Chacrinha: “nada se cria, tudo se copia”. E como se sabe, nada se copia igualzinho, ao se copiar sempre se cria, quanto mais igual se quer fazer mais diferente acaba ficando: a “contribuição milionária de todos os erros”, dizia Oswald de Andrade, darwinista infuso. Foi de tanto falar latim que os europeus acabaram falando português, francês, espanhol.
O fato de que não há nada absolutamente novo não torna o novo menos novo. Tudo já foi feito, não há nada de novo debaixo do sol, toda a linguagem é finita, aquela coisa do Barthes, você só pode dizer o que já foi dito porque a linguagem restringe – isso é uma falsa alternativa. Hoje cada vez mais a matéria-prima sobre a qual a criação artística se exerce é a própria arte. Samplear tem um pouco disso: você está pintando a pintura e não mais a natureza; você está escrevendo a literatura. O sampler está redefinindo o estatuto da citação.
O que pode ser repensado é o estatuto da noção de criação, não para dizer que não é mais possível criação, mas para redefini-lo de uma maneira criativa, digamos assim. Temos que criar um outro conceito de criação. Os dois modos de conceber a criação não dão mais conta do que está se processando nesse mundo atual. Está havendo tanta criação quanto havia antes, não creio que esteja havendo menos. O que houve foi uma mudança das condições. Mudaram as condições de criação, mudaram as condições de distribuição. A criação artística está ficando cada vez mais parecida com a criação científica, que sempre foi um trabalho em rede, um trabalho em que você trabalha em cima do trabalho dos outros, que exige todo um aparato institucional complexo de produção propriamente coletiva.
Vamos ser o outro em nossos próprios termos. Pegar a vanguarda européia, trazer para cá, e dar para as massas. “A massa ainda comerá do biscoito fino que eu fabrico”. A Internet, ou as novas tecnologias de informação, ou as novas formas de criação, permitem que nós possamos, nós todos, realizar nosso sonho de infância e nos tornarmos Robin Hood. Quem não quis ser Robin Hood? E depois, como o mundo virou brasileiro, “tudo é Brasil”, a antropofagia mudou um pouco de contexto. A antropofagia deu certo, nesse sentido.
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